sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

A FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO TRIBUTÁRIO



Caro leitor, o vídeo, abaixo, explica, de maneira didática, o que vem a ser a FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO TRIBUTÁRIO. Procuramos proporcionar uma entonação explicativa, sem nuances epistemológicas ou entranhada pelo excesso da instrumentalidade jurídica, para que você possa de maneira clara, honesta e franca, compreender, com a maior praticidade possível, o tema versado. Esperamos levar o bom entendimento do Direito Tributário, sem, jamais, esquecer de sua, devida, profundidade.  

Após o vídeo, se faz presente uma citação doutrinaria que o contextualiza através do caráter reflexivo, não se fazendo expurgar qualquer reflexo da tradição jurídica e postulado cientifico. 




"A tributação, no Estado de Direito Democrático, constitui instrumento da sociedade. É através das receitas tributárias que são viabilizadas a manutenção da estrutura política e administrativa do Estado e as ações de governo. Mas a tributação arbitrária ou excessiva pode, por si própria, ter efeitos perversos. Assim, a Constituição também cuida de definir as possibilidades e limites da tributação, fazendo-o através da outorga constitucional da competência tributária (quando a Constituição diz quais os tributos que podem ser instituídos e sob que forma, diz, também, implicitamente, que o que dali desborda não pode ser feito) e da clara enunciação de garantias fundamentais do contribuinte. A tributação é válida quando exercida na forma e medida admitidas pela Constituição Federal. A tributação que não encontra suporte no texto constitucional não constitui propriamente tributação, mas violência aos direitos individuais, arbítrio inconstitucional e ilegítimo." (PAULSEN, Leandro. Direito Tribuário: Constituição e Código Tributário à luz a doutrina e da jurisprudência. Editora Livraria do Advogado. Porto Alegre - RS. Ano. 2014. Pág. 42). 





sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

A IMUNIDADE COMO MANTENEDORA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS



Os direitos e garantias fundamentais estão positivadas na Constituição Federativa do Brasil, no título 2, dispostas no artigo 5º ao 17: devem ser considerados instrumentos jurídicos para a proteção do indivíduo frente a coação estatal. Contudo devemos esclarecer que está instrumentalidade protetiva não se vale de escudo para o Estado de Direito, pois este é constituído justamente para alicerçar o indivíduo em face de suas necessidades, fomentando a ordem em meio ao caos do mundo fático. Isso posto, o caráter protetivo dos direitos fundamentais assegura que nenhum governo[1] tirânico venha a engendrar nas estruturas do Estado a função de solapar as liberdades públicas, desta forma o confronto não será com o Estado de Direito, mas com o Estado corrompido pelos interesses de um príncipe sem virtú.

Em conformidade com o versado e a título de exposição, se ilustra, abaixo, o quadro evolutivo das gerações de direitos fundamentais:


Primeira geração

São os direitos civis e políticos

Segunda geração

Referem-se aos direitos de igualdade

Terceira geração

Aludem aos direitos de solidariedade

Quarta geração

Inferem aos direitos relacionados à pluralidade social

Assim, se deve trazer a exposição serem os direitos fundamentais fruto de um movimento dialético, historicamente produzido pela confluência das intencionalidades do ser humano materializados em movimentos sociais, bem como superação doutrinária por elevação dogmática de cunho humanístico, nesse sentido podemos colocar como exemplos, conforme mencionado pelo constitucionalista José Afonso da Silva, “o Manifesto do Partido Comunista e as doutrinas marxistas com sua crítica ao capitalismo burguês e a doutrina social da igreja, a partir do Papa Leão XIII, que teve especialmente o sentido de fundamentar uma ordem mais justa”[2]: essa evolução de itinerário fez com que a Igreja Católica Apostólica Romana se aproximasse dos pobres, corroborando para que a realidade jurídica abraçasse as classes abastadas e , por conseguinte, expandisse esse acolhimento para toda a sociedade:

“a expressão direitos fundamentais do homem são situações jurídicas, objetivas e subjetivas, definidas no direito positivo, em prol da dignidade, igualdade e liberdade da pessoa humana. Desde que, no plano interno, assumiram o caráter concreto de normas positivas constitucionais, não tem cabimento retomar a velha disputa sobre seu valor jurídico, que sua previsão em declaração ou em preâmbulos das constituições francesas suscita. Sua natureza passará a ser constitucional, o que já era uma posição expressa no art. 16 de Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a ponto de, segundo este, sua adoção ser um dos elementos essenciais do próprio conceito de constituição.”[3]


Desta maneira, nos referimos a imunidade como uma forma utilizada pelo próprio Estado com a finalidade de proteger os direitos fundamentais que residem nas liberdades públicas em prol dos cidadãos. Eis a derradeira missão do Estado construído pela modernidade: promover a proteção do bem comum através da tecnologia da linguagem posta pelo direito, e, portanto, não olvidar que o fomento da tributação está intimamente associado com a legitimidade estatal através do zelo pelos direitos fundamentais.

Visto, a professora Regina Helena Costa expõe que as imunidades possuem o condão de aplicar, bem como aprofundar o “princípio da não-obstância do exercício de direitos fundamentais por via da tributação”[4], sendo consideradas normas que detém comando direto e imediato, devido a sua adjetivação como cláusulas pétreas. Diante disso, se deve trazer a lume, as imunidades, pertencerem aos direitos fundamentais de primeira geração, haja vista agirem em conformidade com a  não permissão para a imposição obrigacional do Estado ao sujeito de direito[5]. Em sede de exemplificação, podemos citar o Art. 5º, incisos IV, VI, e IX, da Constituição Federal (ambos zelam pela liberdade de pensamento, consciência e religião), bem como o Art. 150, inciso VI, alínea, b e d da Constituição Federal (assegura a liberdade religiosa, bem como a livre circulação de ideais através da imunização de templos e instituições religiosas e jornais, periódicos, bem como o papel destinado à sua impressão).

Em consonância com o exposto convém a lição da professora Regina Helena Costa:

“Em conclusão, verifica-se que as imunidades tributárias, além de densificarem princípios e valores constitucionais, conferindo a determinados sujeitos autêntico direito público subjetivo de não-sujeição à imposição fiscal, revelam-se, também, instrumentos de proteção de outros direitos fundamentais.”[6]

Ademais, é nessa toada que se visualiza a compilação dos valores sociais em benefício da ratio, ou seja, da razão humana cuja qual é autora de uma realidade onde o permitir ou o proibir que algo aconteça, deve ser trabalhado com profunda dinâmica, originando um cenário onde o equilíbrio deve preponderar sobre qualquer intento de exacerbação: é aqui que reside o ponto médio aristotélico.


[1] Segundo Norberto Bobbio, no livro “estado, governo e sociedade”, a principal distinção entre a concepção de Estado para a concepção de Governo, é que o primeiro simboliza a população que o originou, já o segundo será um grupo de pessoas que irá administrar as engrenagens estatais, para o bem, ou para o mal da sociedade.
[2] AFONSO DA SILVA, José. Curso de direito constitucional positivo. 37ª Edição. Editora Malheiros. São Paulo. 2013. Pág. 177.
[3] Ibidem. Pág. 181.
[4] COSTA, Regina Helena. Imunidades tributárias: teoria e análise da jurisprudência do STF. 3ª Edição. Editora Malheiros. São Paulo. 2015. Pág. 90 e 91
[5] Segundo o civilista, Carlos Alberto Bittar, em seu livro “teoria geral do direito civil”, compreende-se como sujeito de direito aqueles que “nas relações jurídicas os entes a que o direito reconhece personalidade, a saber, as pessoas naturais, (seres humanos) e as pessoas jurídicas (agrupamentos humanos personalizados), observadas as respectivas limitações. É que a ordem jurídica define os contornos em que se pode ter um direito e depois exercê-lo, sempre em função dos valores amparados em seu contexto. BITTAR, Carlos Alberto Bittar. Teoria geral do direito civil. 2ª Edição. Editora Forense Universitária. 2007. Pág. 90.
[6] Ibidem. Pág. 91

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

A RELEVÂNCIA DOS VALORES PARA A CONCEPÇÃO DA NORMA TRIBUTÁRIA



Parte II - A inserção dos valores na teoria da norma tributária

Para o Estado de Direito sobreviver, se faz necessário manter suas engrenagens polidas, ou seja, só se poderá perdurar no tempo histórico se houver uma atividade financeira coerente com uma relação balanceada entre a sua receita[1] e despesa[2], pois sem esse equilíbrio, o Estado se degringola, e, por derradeiro, sucumbe ao seu próprio peso e poder. 

Destarte, é imprescindível um sistema de arrecadação, neste momento o indivíduo haverá de ser compelido para sustentar a atividade do Estado, juntamente com toda a realidade que fora criada para a sua manutenção: a relação jurídica que é estabelecida se concretiza, de modo materialmente pulsante, na seara do direito tributário, pois será nesta ramificação da realidade jurídica que notamos, não apenas o coação estatal se movimentar, mas, principalmente, a dialética preponderante entre as liberdades individuais e o interesse público: os dois polos se movimentam conjuntamente como se estivessem em uma valsa, onde a harmonia entre o masculino e feminino deve estabelecer uma íntima confluência de desejos, sem olvidar da formalidade que gerencia cada movimento, zelando para que não ocorra qualquer espécie de sobreposição entre uma formalidade e outra, o que ocasionaria o descompasso e consequente ruína do espetáculo. Mister expor os ensinamentos do jurista, Rubens Gomes de Souza[3], contextualizando e aprofundando o aqui versado:

“Justamente quando o Estado começa a exercer essas atividades é que surgem situações de relação jurídica, isto é, situações de contacto ou conflito entre o Estado e os particulares, de cujo patrimônio aquele visa retirar o montante dos tributos. Sendo essas relações reguladas pelo direito, uma vez que o Estado moderno, tendo deixado de ser autocrático, só pode agir através do direito, formou-se, dentro do direito financeiro, um capítulo especial dedicado às regras jurídicas que disciplinam a criação, o desenvolvimento e a extinção de tais relações referentes à cobrança dos tributos e à sua fiscalização. Esse capítulo do direito financeiro, em razão da complexidade da matéria e da sua constante ampliação e especialização, adquiriu aos poucos uma situação de autonomia e constitui atualmente um ramo particular do direito público, denominado direito tributário. Podemos portanto definir o direito tributário como sendo o ramo do direito público que rege as relações jurídicas entre o Estado e os particulares, decorrentes da atividade financeira do Estado no que se refere à obtenção de receitas que correspondem ao conceito de tributos.”[4]

Diante deste cenário, estabelecido pela linguagem, o Direito Tributário será construído com o surgimento da norma tributária, pois ela produzirá o comando que dará origem à obrigação tributária que produzirá, na esfera do dever-ser, uma relação jurídica entre o fisco e o contribuinte. Para que a norma ganhe sentido, e, portanto, possa produzir o comando a ser obedecido, ela deve estar eivada pela valoração cultural que possibilitou sentido a este momento histórico. Essa valoração se dará por diversos níveis: econômico, antropológico, psicológico, histórico, político. Todavia, a valoração só inundará a realidade jurídica, com a sua axiologia, quando o poder constituinte, através de seus representantes, devidamente institucionalizados, verbalizar a linguagem abstrata à linguagem de comando, nesse instante a norma é criada, podendo ocasionar efeitos materiais às condutas dos indivíduos que sofrerão a incidência tributária e, consequentemente, recolherão o tributo em prol do Estado de Direito.

Por isso o direito tributário pode ser classificado como uma seara de extremada concretude, pois será nele que poderemos vislumbrar a realidade jurídica se materializar em ações de comando, conduta e responsabilidade.

Em conformidade os ensinamentos do professor Paulo de Barros Carvalho, não se deve, em hipótese alguma, olvidar ser a norma condicionada com a expressão existencial humana formalizada pela cultura, pois sem este aspecto a norma não possuirá eficácia e será fadada à inexistência para a realidade jurídica.

Ao se admitir que uma obrigação do direito surge no momento em que acontece certa manifestação jurídica na vida social, admite-se, por conseguinte, que o direito funciona com a sua lógica própria. Essas duas premissas que sustentam o fenômeno jurídico da incidência da norma sobre o mundo fático, não pode estar submersa ao misticismo do plano das ideias, ou seja, para o professor Paulo de Barros Carvalho, a doutrina clássica[5] incorreu no erro de se pensar a incidência como algo que surgiria somente pelo nascimento de uma situação fática que estaria de acordo com o plano das ideias jurídicas. Ora, esclarece o professor, para que a incidência se dê, será necessário a confluência entre o reconhecimento pela autoridade competente, dentro do sistema jurídico, juntamente com o procedimento adequado: será o acontecimento jurídico indissociável da realidade jurídica, pois enquanto não produzida a linguagem com o timbre jurídico não há como garantir que tenha havido a incidência da norma, pois a juridicidade do fato só ocorrerá quando for produzido expediente necessário para documentar o seu nascimento, e, portanto, será através dessas condições que ganhará forma a regra matriz de incidência:

“Ora, a regra-matriz de incidência tributária é, por excelência, u’a norma de conduta, vertida imediatamente para disciplinar a relação do Estado com seus súditos, tendo em vista contribuições pecuniárias. Concretizando-se os fatos descritos na hipótese, deve-ser a consequência, e esta, por sua vez, prescreve uma obrigação patrimonial. Nela, encontra- remos uma pessoa (sujeito passivo) obrigada a cumprir uma prestação em dinheiro. Eis o dever-ser modalizado.”[6]

A rigor, a regra matriz de incidência enlaça o fato cujo qual não pertence à realidade fática, mas à realidade jurídica cunhada pelo Estado de Direito no alvorecer da república; diante da realidade jurídica, o fato, construído pela linguagem posta através da prescrição do direito positivo, será devidamente avaliado pela hipótese para a aferição de todos os critérios, nela, demandados. Nesse sentido, uma obrigação tributária nasce quando há a previsão abstrata posta na lei associada a um fato jurídico, que documentado pela produção dos expedientes que criam a realidade jurídica, já foram praticados no tempo e no espaço.

É mediante análise que surge a equação discriminada abaixo:

Enunciando: a hipótese tributária está para o fato jurídico tributário assim como a consequência tributária está para a relação jurídica tributária. Os antecedentes da proporção figuram no mesmo plano — o plano normativo geral e abstrato; por outro lado, os consequentes da proporção aritmética — fato jurídico e relação jurídica tributária também se acham no mesmo plano — o plano que fala do mundo material dos objetos físi- cos e dos seres humanos.[7]

Em suma, qualquer fato social que estiver na esfera jurídica, não possui o condão naturalístico da realidade fática, contudo é uma construção determinada pela realidade jurídica fundada em valores culturalmente estabelecidos pela história, e, portanto, será apreciado conforme a lógica do sistema, sendo, a norma, o holofote que iluminara a casuística em prol da coerência com a consciência que o indivíduo possui das formas mantenedoras da boa operação do direito em função da preservação das bases civilizacionais.



[1] Segundo o tributarista Kiyoshi Harada, se pressupõe receita o “ingresso de dinheiro aos cofres do Estado para atendimento de suas finalidades”. HARADA, kiyoshi. Direito financeiro e tributário. 26ª Edição. Editora Atlas. São Paulo. 2017. Pag. 41.
[2] Conforme ensina o doutor Edvaldo Pereira de Brito a despesa pode ser caracterizada como sendo os “gastos, os recursos aplicados, que o Poder Público faz de acordo com uma certa solenidade, de acordo com uma certa formalidade, de acordo com um certo critério”. Atividade financeira do Estado. Edvaldo Pereira de Brito. GANDRA, Ives Gandra Martins. MENDES, Gilmar Ferreira, NASCIMENTO, Carlos Valder do (coord.). Tratado de direito financeiro, volume 1. 1ª Edição. Editora Saraiva. 2013. Pág. 78
[3] Nas palavras de Paulo de Barros Carvalho, em entrevista dada ao site Conjur, disponibilizado pelo link. http://www.conjur.com.br/2009-out-21/livro-aberto-livros-vida-tributarista-paulo-barros-carvalho: “Ele criou o atual Sistema Tributário Brasileiro do nada, foi o principal coautor do projeto, e o sistematizador do Direito Tributário no país
[4] SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de legislação tributária. Edição póstuma. São Paulo. Editora Resenha Tributária Ltda, 1975. Pág. 65.
[5] A doutrina clássica possui como o seu maior expoente, o ilustre jurista alagoano Pontes de Miranda.
[6] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 28ª edição. Editora Saraiva. 2017. Pag. 355.
[7] Ibidem. Pág. 274.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

A RELEVÂNCIA DOS VALORES PARA A CONCEPÇÃO DA NORMA TRIBUTÁRIA




Parte I -  A fonte cultural para a concepção dos valores sociais

O ser humano possui a racionalidade como característica fundamental para o seu existir, por isso, tem o condão de transcender ao seu período histórico, devido a atitude singular da escolha: ele escolhe ir ou não ir; construir ou não construir, produzir valores que o ultrapassa como indivíduo historicamente localizado ou refutar a gama de valores através da atitude cognitiva fundada na negação.

Do exposto, trazemos à discussão a produção dos núcleos de significação orquestrados pelos indivíduos, pois conforme já mencionado, estes núcleos se elevam aos píncaros da história, e, neste momento adquirem uma longevidade maior do que os seus elaboradores: tornam-se cultura, quando agrupados pelo movimento cognitivo dos agentes sociais. Ora, os objetos culturais devem ser classificados, conforme aprendido através dos ensinamentos da jurista Maria Helena Diniz[1]: a cultura existe para ser vertida na sociedade, sendo presenciada pela experiência que pode possibilitar um cenário positivo ou negativo aos indivíduos que estão engendrados nela através da compreensão de mundo.

Assim, a cultura precisa existir para promover o suporte valorativo à república, pois ela é a expressão da consciência humana pelo mundo natural, possibilitando o advento da ideia de valor, que culminará em uma articulação empreendia para gerar novo significado aos aspectos da realidade trazida pelo fluxo histórico:

“a cultura encontra no espírito a sua fonte primordial, revelando-se através da História em múltiplas manifestações. Diremos, recorrendo a símile imperfeito, que a cultura está para o espírito como as águas de um rio estão para as fontes de que promanam. Não se pode compreender um curso fluvial sem suas nascentes, embora ele não se confunda com seus mananciais, e estes condicionem, em jacto perene, a perenidade do mesmo rio. Diríamos, igualmente, que o espírito humano, na sua universalidade, revelada pelos indivíduos que compõem a espécie, possibilita uma série de realizações e de atos exteriores, em virtude dos quais podemos penetrar naquilo que há de essencial no homem. Podemos e devemos examinar o homem, não só em sua individualidade biopsíquica e em sua estrutura moral, mas também naquilo em que ele se reflete, ou seja, em suas produções e em suas obras. Há, portanto, uma ligação fundamental e essencial entre Axiologia, ou Teoria do Valor, e História; entre História e Cultura.”[2]

Isso posto, se infere que a concepção de cultura deve ser encarada com as mesmas premissas que se agrupam para o florescimento da consciência, e, sendo assim, a derivação desta análise se apresenta no momento em que trazemos o significado de cultura como uma expressão material da absorção do conhecimento:

“De certo modo, podemos dizer que a cultura é o correlato da consciência. Esta é sempre “consciência de algo”, donde a tese husserliana sobre a intencionalidade como seu fulcro e essência. Ora, a cultura pode ser vista como projeção histórica da consciência intencional, isto é, como o mundo das intencionalidades objetivadas no tempo historicamente vivido. É necessário esclarecer que não são apenas as coisas materiais e tangíveis que compõem o mundo da cultura, mas também os conhecimentos lógicos que se adquirem a respeito dos homens e das coisas e as atitudes ou formas de comportamento social. Tanto compõe a cultura uma estante como um teorema de Pitágoras, um quadro de Rafael ou uma estátua de Donatello. Há, portanto, tantas formas e expressões de cultura quantos os valores que nesses bens se traduzem ou se expressam, significando uma integração do dado da natureza no processus da existência humana.”[3]

Portanto, somente caberá pensar em uma realidade jurídica após o ser humano vivenciar a experiência cultural, pois será nesse momento que ele adquirira a sua dignidade cuja qual fundará as liberdades individuais que serão protagonistas à sociedade moderna: é a cultura que proporcionará a imagem advinda da aglomeração de valores sociais, produzindo, consequentemente, a harmonia a ser protegida pelo método científico.




[1] DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 20ª edição. Editora Saraiva. 2009.
[2] REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20ª Edição. Editora Saraiva. São Paulo. Pág. 214.
[3] Ibidem. Pág. 213 e 214.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

REPÚBLICA E CONSTITUIÇÃO: A PROTEÇÃO DOS DIREITOS ATRAVÉS DA UTILIZAÇÃO DO MÉTODO DO CONSTRUTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO


Parte II -  A aplicação do método do construtivismo lógico-semântico para o bom aproveitamento e zelo dos direitos individuais proporcionados pelo Estado de Direito.

O direito como mantenedor da credibilidade pela qual a forma do Estado se realiza, não pode ser operado de maneira torpe e vazia, haja vista os regimes totalitários[1] que, através de uma burocracia paramentada pela vontade de seu soberano, ideologicamente enraizado, ocasionaram as maiores catástrofes sociais da história. Neste diapasão, a instrumentalidade do direito precisa, a rigor, se valer de uma lógica que se aproxima da racionalidade cuja qual busca a concretização do expediente científico, ou seja, a superação de ideais e sistemas em prol da efetivação da progressão do conhecimento.

Nesse sentido, se deve buscar um critério metodológico que esteja aberto ao mundo fático, para que o método não se faça uma verdade absoluta, contudo esteja submetido à avaliação da casuística proporcionada pelos fatos advindos de todas as esferas da realidade, sendo, portanto, a imposição dos casos concretos uma conditio sine qua non para a apuração metodológica através da depuração das regiões ônticas[2] em bases lógicas: o espírito da sociedade não reside em um plano metafísico, mas no orbe cognitivo do ser humano, pois será o seu gênio criativo[3] que deverá superar o caos do “mundo da vida” [4], dando sentido a este mundo através da produção de formas lógicas, materializadas na consciência do indivíduo para apreender aquilo apresentado pela sociedade através da seara política, econômica, antropológica, ética, moral e jurídica. O trajeto percorrido pela consciência, leva o ser humano a aproximar-se, conforme ensina Paulo de Barros Carvalho, “das instâncias cognitivas do saber”[5]. Preleciona o ilustre mestre:

“Bem, o conhecimento pode ocorrer mediante qualquer das modalidades formais de consciência: a percepção, a sensação, a lembrança, as emoções, a imaginação, a vontade, o pensamento (ideias, juízos, raciocínios, sistemas), o sonhar, o alimentar esperanças, etc. Consubstancia-se na apreensão do objeto mediante ato específico e forma correspondente. É preciso salientar, contudo, que há meios mais ou menos eficazes para que se dê o fenômeno de absorção. Sempre lembrando que, vezes sem conta, o objeto é aprisionado por atos competentes, mas, por uma série de motivos sobre os quais especula a psicologia individual, ele permanece latente, oscilando em camadas inferiores do nosso espírito, que poderíamos chamar de “saberes inconscientes”. Por variadas contingências existenciais, esses objetos não são conduzidos imediatamente à plataforma da consciência, o que não significa dizer que não tenham sido adequadamente capturados ou que inexistem como conhecimento. Nossas vivências pessoais atestam circunstâncias desse tope, com muita reiteração. Num átimo, são eles alçados à condição de objetos sobre os quais temos consciência, conquanto saibamos que já estavam depositados nos misteriosos arquivos situados em camadas inferiores do nosso espírito.”[6]

Outrossim, o método científico adotado deverá ser expressado através da linguagem; ela o tornará logicamente compreensível, realizando o movimento de transmissão da mensagem que repercutirá pela comunidade detentora da consciência produzida em função do objeto de estudo, para, então, trazer a lume as disciplinas que darão substância ao conhecimento produzido e propagado pela ciência. Sem a linguagem não haveria civilização, pois o cabedal de signos[7] não seria transmitido ao longo das gerações, e, portanto, a própria consciência não se formaria, haja vista a linguagem possuir a função de materializar a abstração contida na cognição para o mundo dos fatos: a linguagem possibilita ao ser humano se comunicar, isso influi diretamente no produzir sentido ao mundo, pois sem este movimento, o que restaria seria, apenas, e, tão somente, a realidade cósmica, totalmente independente da existência humana. Isso posto, o filósofo tcheco, naturalizado brasileiro, Vilém Flusser, com monumental elucubração de sabedoria, expõe:

“Umas das ânsias fundamentais do espírito humano em sua tentativa de compreender, governar e modificar o mundo é descobrir uma ordem. Um mundo caótico seria incompreensível, portanto careceria de significado e seria ocioso querer governá-lo e modificá-lo. A própria existência humana não passaria de um dos elementos dos quais o caos se compõe, seria fútil. Um mundo caótico, embora concebível, é, portanto, insuportável. O espírito, em sua “vontade de poder”, recusa-se a aceitá-lo. Procura, no fundo das aparências caóticas, uma estrutura graças à qual as aparências, caóticamente “complicadas”, possam ser “explicadas”. Essa estrutura deve funcionar de duas maneiras: deve permitir a fixação de cada aparência dentro do esquema geral, deve servir, portanto, de sistema de referência; deve permitir a coordenação entre as aparências, deve servir de sistema de regras. A estrutura deve ser estática e dinâmica, isto é, utilizando-nos da estrutura estática, tornamos a aparência apreensível. Ligando a aparência com outra, de maneira que ela seja consequência de outra, isto é, utilizando-nos da estrutura dinâmica, tornamos a aparência compreensível. O primeiro esforço, o da fixação equivale a uma catalogação, equivalente a uma hierarquização do mundo. Se coroados de êxito, o primeiro esforço resultará em catálogo de tôdas as aparências bem definidas uma diante da outra, e o segundo esforço resultará em hierarquia de classes de aparências perfeitamente deduzíveis uma da outra. O mundo terá sido transformado de caos em cosmos. Poderemos dizer que o mundo, “aparentemente” caótico, é “realmente” ordenado. Ou, que há um mundo “aparente” caótico, e um mundo “real” ordenado. Essa estrutura da “realidade”, ou melhor, essa estrutura que é a “realidade” não tendo sido ainda descoberta, os nossos catálogos e as nossas classificações estando ainda imperfeitos, podemos, com certa dose de otimismo, dizer que o espírito avança da “aparência” para a “realidade.” [8]

Diante desta análise, Flusser afirma:

“Cada palavra, cada forma gramatical é não somente um acumulador de todo passado, mas também um gerador de todo futuro. Cada palavra é uma obra de conversação a partir do indizível, em cujo aperfeiçoamento colaboram as gerações incontáveis dos intelectos em conversação e a qual nos é confiada pela conversação a fim de que a aperfeiçoemos ainda mais e a trasmitamos aos que virão, para servi-lhes de instrumento em sua busca indizível.” [9]

 A composição de um método coerente é de fundamental importância para a compreensão do direito e seus ramos, pois não se deve olvidar ser o direito uno, todavia fragmentado por disciplinas que colaboram para erigir a realidade jurídica como essência do Estado de Direito que assegura as liberdades individuais através da república. É diante desta necessidade que adotamos o Construtivismo Lógico-Semântico, como instrumento de trabalho, que impede verdades absolutas, arraigadas pelas ideologias totalitárias, bem como afasta o relativismo vazio de significado da população que zela em demasia pela opinião, solapando, inevitavelmente, o conhecimento cientifico, de estabelecer na operação do direito, uma atividade de cunho, completamente, desprovido de segurança para integridade da harmonia social. Nesse sentido, Paulo de Barros Carvalhos nos diz:

“O construtivismo lógico-semântico é, antes de tudo, um instrumento de trabalho, modelo para ajustar a precisão da forma à pureza e à nitidez do pensamento; meio e processo para a construção rigorosa do discurso, no que atende, em certa medida, a um dos requisitos do saber científico tradicional. Acolhe, com entusiasmo, a recomendação segundo a qual não haverá ciência ali onde a linguagem for solta e descomprometida. O modelo construtivista se propõe amarrar os termos da linguagem, consoante esquemas lógicos que deem firmeza à mensagem, pelo cuidado especial com o arranjo sintático da frase, sem deixar de preocupar-se com o plano do conteúdo, selecionando as significações mais adequadas à fidelidade da enunciação.” [10]

Diante de tudo o que foi exposto, compreende-se que o Estado de Direito fundado pelo itinerário republicano, somente será possível se houver uma realidade jurídica calcada em uma matriz cognitiva de profunda coerência com o trajeto que se deve percorrer para a concepção da consciência e busca do conhecimento; para a efetivação deste movimento se deve possuir a linguagem como instrumento de materialização das abstrações localizadas no plano da razão, e, portanto, os direitos individuais serão preservados, pois não se haverá de solapa-los, enquanto houver uma Constituição que os garanta, bem como um método científico, razoável, que zele pelo bom aproveitamento de suas normas.



[1] Uma análise aprofundada sobre a temática do totalitarismo pode ser encontrada no livro escrito pela filósofa alemã, Hannah Arendt, intitulado “as origens do totalitarismo”.
[2] As regiões ônticas são relacionadas aos objetos do mundo: cultura, ideal, metafisica e natural.
[3] O gênio criativo do ser humano diz respeito a capacidade de gerar uma realidade, com lógica própria, que se sobreponha a esfera da natureza.
[4] O mundo da vida é um tema originário da fenomenologia, e, portanto, utilizado pelo filosofo Edmund Husserl para alcançar, universalmente, todos os sujeitos que compartilham procedimentos lógico-psicológicos para compreenderem algo. Em suma, o mundo da vida refere-se ao modo de fundamentação dos atos da consciência na fenomenologia.
[5] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 6ª Edição. São Paulo. Editora Noeses. Pág. 08.
[6] Ibidem. Pág. 12.
[7] Signo é o elemento da linguagem que alude ao conceito através de sua emissão sonora por um mensageiro (significante e significado se unem para dar sentido às coisas do mundo).
[8] FLUSSER, Vilem. Língua e Realidade. 1ª Edição. São Paulo. Editora Herder. 1963. Pág. 11 e 12.
[9] Ibidem. Pág. 229.
[10] CARVALHO, Paulo de Barros. Constructivismo lógico-semântico. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/101/edicao-1/constructivismo-logico-semantico.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

REPÚBLICA E CONSTITUIÇÃO: A PROTEÇÃO DOS DIREITOS ATRAVÉS DA UTILIZAÇÃO DO MÉTODO DO CONSTRUTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO



Parte I -  Res publica como princípio e o Direito como instrumento de proteção da integridade dos direitos individuais para o bem comum.

coisa pública, denominada República, segundo o professor Geraldo Ataliba, em seu livro intitulado “república e constituição”, é o farol que ilumina o breu proporcionado pela escuridão da ignorância, associado com o cinismo de períodos históricos sedentos pela restrição da liberdade. O mestre do direito, nos alerta, bem como apresenta, em sede de demonstração, a afirmação de que o sistema republicano não é apenas uma ideologia zelosa pelos direitos individuais projetada pela liberdade, mas, sobretudo, é o criador de um sistema constitucional que legitima, através dos pilares metodológicos da realidade jurídica, uma sociedade vinculada com a prática da obtenção, promoção e concretização do espaço público em benefício do povo: trajeto percorrido em função do bem comum para proporcionar aos indivíduos em sociedade uma condição de integridade espiritual em meio ao caos natural[1], conforme preleciona o filósofo Miguel Reale:

“O bem comum é o fundamento último do Direito assim como o é da soberania desde que por bem comum se entenda a própria “ordem social justa”. A compreensão da natureza do poder torna-se mais clara quando lembramos que o bem comum não coincide com a idéia particular que cada homem faz de seu próprio bem. Como nos diz Jean Dabin, a soberania é uma exigência do bem comum que não poderia se realizar pela simples benevolência dos indivíduos e dos grupos - e não pode dispensar uma “conjugação obrigatória dos esforços de todos, sem distinções de classe, de sexo, de religião, de partido, etc.”, de maneira que o “empreendimento da coisa pública reveste a forma de uma sociedade ao mesmo tempo universal e necessária”.[2]

O jurista Geraldo Ataliba, ensina  como o Estado, quando fundado em premissas republicanas, alça a população ao bem comum, ou seja, coloca os cidadãos em cima de um alicerce institucionalizado que culmina ao desenvolvimento da nação, juntamente com a elevação do indivíduo, que possui a possibilidade de deixar a condição de servo ao deleite de um tirano, para externalizar uma postura autônoma, típica de um membro dinâmico da sociedade, dentro da realidade jurídica: o indivíduo se beneficia das instituições mantenedoras da república, bem como faz parte do movimento empreendido em prol da sua manutenção, sendo, portanto, a res publica, uma coisa pública, todos se beneficiam dela, pois se não houvesse uma totalidade de indivíduos engajados em prol de sua existência, ela se desmancharia como madeira envelhecida ao ser machucada pelo tempo trazido pelos anos através do caminhar histórico. Nesse sentido, Ives Gandra da Silva Martins condensa, de forma precisa, o que vem a ser o conflito humano, ocasionado ao longa da história, com o intuito de ordenar a sociedade para a proteção dos interesses individuais, inferindo que “a história do crescimento do moderno Estado nacional ao longo dos tempos é a história do embate permanente entre o seu próprio poder e todos os demais poderes sociais”.[3]  

Diante disso, deve-se posicionar à baila a profusão de fé entregue à concepção de Estado criado na alvorada da modernidade pelo indivíduo imerso em uma condição onde não havia a civilidade: o clássico cenário descrito por Thomas Hobbes em seu livro “leviatã”[4]. Pois foi através do decréscimo do misticismo preponderante durante a período histórico da Idade Média, que se configurou um cenário de ceticismo perante o mundo fático, ocasionando o desvelamento da tragédia emanada do panorama político, tal como demonstrou Nicolau Maquiavel em seu famoso livro, “o príncipe”[5]. Assim, houve um movimento de acréscimo à racionalidade, que sem embargo, posicionou as engrenagens da cognição de maneira a inserir na linguagem, que articula e é articulada pela cultura, a concepção de um Estado de Direito sob o regime republicano calcado pela proteção vigorosa de uma Carta Magna constituída pelo povo e para o povo.

Desta forma, a lição do professor Ataliba mostra o significado histórico da constituição para o alicerce da República:

Deveras, a república que erigimos é a expressão concreta do Estado de Direito que a cidadania brasileira quis criar, ao plasmar suas instituições. A partir da consciência cívica da titularidade da res publica e da convicção da igualdade fundamental entre todos os cidadãos, estruturou-se o Estado brasileiro na base da ideia de que o governo seria sujeito à lei e esta haveria de emanar do órgão da representação popular. Destarte, o formidável poder que os cidadãos conferiram ao Estado há de ser exercido por órgãos autônomos e independentes entre si, com funções delimitadas, e jamais poderá ser exercitado (tal poder) de modo a sobrepassar certas barreiras, postas como seu limite no próprio texto expressivo dessa manifestação de vontade criadora do Estado. Daí a isonomia que os cidadãos põem como premissa da própria disciplina do poder; subsequentemente, o estatuto de legalidade e, por fim, a proteção às liberdades pública, delineadas como direitos individuais. Implicadas nesse contexto estão a certeza do direito objetivo e a segurança dos direitos, como condição de eficácia do sistema.”[6]

Isso posto, vem a lume o cenário configurado pela proteção aos direitos individuais: os direitos são protegidos após a constituição da Carta Magna Republicana, conforme expõe de modo apurado o doutor Ataliba:

“A previsibilidade da ação estatal, decorrente do esquema de constituição rígida, e a representatividade do órgão legislativo asseguram aos cidadãos, mais do que os direitos constantes na tábua do artigo 5º, a paz e o clima de confiança de que lhes dão condições psicológicas para trabalhar, desenvolver-se, afirmar-se e expandir sua personalidade.”[7]

Assim, se deduz do exposto, ser a República, juntamente com o seu instrumental tecnológico articulador das instituições mantenedoras da ordem social, o baluarte que o Estado deve possuir para concretizar a segurança jurídica na esfera do mundo fático, haja vista ser o direito o instrumento que articula o diálogo entre o espaço público e o espaço privado, tornando o Estado de Direito uma entidade detentora de credibilidade para simbolizar o povo por meio da Constituição. Neste diapasão, o jurista paulista é preciso, conforme se lê:

“Se, como visto, o dono da res publica é o povo, todas as disposições a respeito de sua (coisa pública) preservação, desenvolvimento e aplicação a ele (povo) pertencem. Só o dono pode dispor sobre o destino da coisa; só ele pode dizer como, quando e em que finalidade ela pode ser aplicada.”[8]

O professor Geraldo Ataliba adere a conceituação de “povo” cunhada pelo jurista austríaco Hans Kelsen, e, aqui, abraçada por nós, haja vista tal definição proporcionar um entendimento profundo sobre o conceito, produzindo ao interlocutor da mensagem um entendimento simbólico do que venha a ser o Estado de Direito.

 “Povo”, aqui, deve ser entendido como o conjunto dos cidadãos, na acepção jurídica do termo. O povo na república não é a massa de súditos do Estado autoritário: “O súdito é indivíduo isolado, de uma ciência social individualista; o cidadão, pelo contrário, é o membro que forma parte de um todo orgânico superior, na concepção universalista da sociedade” (Kelsen ob. cit., p. 172).”[9]

Se verifica serem os direitos fundamentais contidos no Art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, nada mais, nada menos, do que normas asseguradoras das liberdades individuais conquistadas ao longo dos séculos, através de um árduo caminhar humano sobre os eventos ocasionais do transcorrer histórico. É na linha dessas diretrizes, historicamente construídas, que a sociedade obteve coerência para gerar debates jurídicos, pacificar entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, bem como superar conceitos estabelecidos sem o risco de solapar o indivíduo em prol da vontade de um governo tirânico.



[1] As expressões “integridade espiritual” e “caos natural” são pertinentes para simbolizar a condição de plenitude psicológica proporcionada pelo Estado de Direito, através da segurança produzida pela realidade jurídica. Esse cenário de plenitude social é a conditio sine qua non para a existência do Contrato Social que deu origem ao EstadoNesse sentido, de forma sã e poética, Alfredo Augusto Becker, em seu livro “teoria geral do direito tributário” nos esclarece: “dentro da sociedade, os indivíduos vivem em permanente competição de interesses (a rigor, o indivíduo desinteressado seria perigoso para a sociedade); porém, o indivíduo não deverá empregar a força e a violência natural para lutar contra seus competidores. O comportamento do indivíduo deverá ser tal que os outros membros da sociedade possam contar com uma certa regularidade no seu modo de agir, nas suas intenções pacíficas e na veracidade de seus assuntos privados e públicos; a função do Direito Positivo é obter de tais indivíduos um tal comportamento. A fim de que a ação de cada indivíduo tenha o seu desenvolvimento garantido, é necessário que cada indivíduo saiba (com relação a sua ação e às ações dos outros indivíduos) qual será o seu resultado histórico, ou melhor, como será qualificada e como será incluída na vida histórica da sociedade e isto ele obtém graças ao Direito Positivo. A regra jurídica transforma o determinismo natural (espontâneo ou ao arbítrio do indivíduo) dos atos e fatos sociais, em um determinismo artificial porque impõe àqueles atos e fatos sociais uma distorção específica e um comportamento cuja estrutura e direção se apresentam ao legislador como necessárias ao bem comum (autêntico ou falso). (BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. Editora Marcial Pons e Noeses. 2007. Pág. 77 e 78).
[2] REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 5ª Edição. Editora Saraiva. São Paulo. 2000.  Pág.67
[3] GANDRA, Martins. O Poder. Editora Saraiva. São Paulo. 1984. Pag.08.
[4] A filósofa francesa, Simone Goyard-Fabre, descreve, analiticamente, a concepção filosófica de Hobbes: “ainda não se enfatiza suficientemente que, na obra de Hobbes, o direito de natureza só encontra expressão graças à hipótese metodológica do estado de natureza: “a condição natural dos homens” é o artifício operatório, de que a filosofia hobbesiana necessita para operar a construção do Commonwealth. É um erro, portanto, atribuir ao direito de natureza uma dimensão ou uma virtude realista: já que o estado de natureza provavelmente nunca existiu, nem sequer nos tempos longínquos da proto-história, o direito de natureza não pode ser um dado empírico ou um fato existencial antepolitico. Ele não é o desejo de potência de que fala Platão em Górgias; não é o triunfo do forte sobre o fraco, a capacidade natural do mais forte exaltada por Cálicles. Convém, por conseguinte, sublimar que os conceitos correlativos de estado de natureza e de direito de natureza não são téticos e sim hipotéticos: no monismo hobbesiano, eles não são dados empíricos, mas constructa, isto é, esquemas de inteligibilidade elaborados por longos encadeamentos de razões. Como tais, têm valor apenas lógico e metodológico e devem ser relacionados com a filosofia primeira de Hobbes, portanto, com a estrutura mecanicista do sistema. Assim, o direito de natureza que Hobbes define designa, na hipótese do estado de natureza, um direito-poder ou uma força que é um querer-viver próprio de cada indivíduo e universal. Esse direito, que é igual em todos e dá a cada qual o direito a tudo de que necessita, é desprovido de juridicidade pois é “força” ou “liberdade” no sentido mecanicista desses termos; como tal, é imprescritível pois é a determinação imediata da vida. Mas, para Hobbes, o importante reside na condição de instrumento ou de organon que ele atribui ao direito de natureza para sua “ciência” política. Com efeito, o desafio de sua filosofia é apoiar no procedimento analítico que o levou a conceituar o direito de natureza do indivíduo uma postura sintética ou compositiva que reprimirá a liberdade natural e representará as pulsões agonísticas, defensivas ou ofensivas, inseridas no direito de natureza. O direito natural revela-se desse modo o elemento analitico da sintese politica. O eixo dessa síntese é a ideia de lei - lei natural e lei civil - que se opõe ao conceito de direito como a obrigação que cerceia e se opõe à liberdade que é a força bruta. Na sociedade civil, o indivíduo renuncia a exercer seu direito de natureza e, pela mediação da lei, o poder soberano exerce uma coerção que instaura a civilidade e a paz.(GOYARD-FABRE, Simone. Tradução: Claudia Berliner. Os fundamentos da ordem jurídica. 1ª Edição. Editora Martins Fontes. São Paulo. 2002. Pág. 52 e 53). 
[5] Maquiavel é o filósofo da ação política, sem idealismos ou especulações utópicas, conforme expõe a filósofa do direito Simone Goyard-Fabre: “originalidade de Maquiavel transparece em O príncipe, em que é, acima de tudo, o pensador da ação política. A seu ver, o Poder não se define pela idéia, mas pelos procedimentos que levam a ele e permitem nele se manter (...) Assim, Maquiavel não concebe outra organização política além da que se preocupa em primeiro lugar com o "serviço público". Acima de tudo, não a pensa de acordo com a figura hipotética de seu dever-ser; encontra-a na realidade concreta do Poder e de suas manifestações, segundo "a verdade efetiva da coisa'', mesmo que esta esteja oculta em recônditos complicados e por vezes cheios de sombras (...) A normatividade do Poder se exprime· na maneira que o Estado tem - seja ele principado ou república - de adotar novas leis para atender às dificuldades da situação. (GOYARD-FABRE, Simone. Tradução: Irene A. Paternot. Os princípios filosóficos do direito político moderno. 1ª Edição. Editora Martins Fontes. São Paulo. 1999. Pág. 60, 61 e 62).
[6] ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 3ª Edição. São Paulo. Malheiros. 2004. Pág. 121.
[7] Ibidem. Pág. 167.
[8] Ibidem. Pág. 177.
[9] Ibidem. Pág. 177 e 178.