Parte II - A inserção dos valores na
teoria da norma tributária
Para o Estado de Direito sobreviver, se faz necessário manter suas
engrenagens polidas, ou seja, só se poderá perdurar no tempo histórico se
houver uma atividade financeira coerente com uma relação balanceada entre a sua
receita[1]
e despesa[2],
pois sem esse equilíbrio, o Estado se degringola, e, por derradeiro, sucumbe ao
seu próprio peso e poder.
Destarte, é imprescindível um sistema de arrecadação, neste momento o
indivíduo haverá de ser compelido para sustentar a atividade do Estado,
juntamente com toda a realidade que fora criada para a sua manutenção: a
relação jurídica que é estabelecida se concretiza, de modo materialmente
pulsante, na seara do direito tributário, pois será nesta ramificação da
realidade jurídica que notamos, não apenas o coação estatal se movimentar, mas,
principalmente, a dialética preponderante entre as liberdades individuais e o
interesse público: os dois polos se movimentam conjuntamente como se estivessem
em uma valsa, onde a harmonia entre o masculino e feminino deve estabelecer uma
íntima confluência de desejos, sem olvidar da formalidade que gerencia cada
movimento, zelando para que não ocorra qualquer espécie de sobreposição entre
uma formalidade e outra, o que ocasionaria o descompasso e consequente ruína do
espetáculo. Mister expor os ensinamentos do jurista, Rubens Gomes de Souza[3],
contextualizando e aprofundando o aqui versado:
“Justamente
quando o Estado começa a exercer essas atividades é que surgem situações de relação jurídica, isto é, situações de
contacto ou conflito entre o Estado e os particulares, de cujo patrimônio
aquele visa retirar o montante dos tributos. Sendo essas relações reguladas
pelo direito, uma vez que o Estado moderno, tendo deixado de ser autocrático,
só pode agir através do direito, formou-se, dentro do direito financeiro, um
capítulo especial dedicado às regras jurídicas que disciplinam a criação, o
desenvolvimento e a extinção de tais relações referentes à cobrança dos
tributos e à sua fiscalização. Esse capítulo do direito financeiro, em razão da
complexidade da matéria e da sua constante ampliação e especialização, adquiriu
aos poucos uma situação de autonomia e constitui atualmente um ramo particular
do direito público, denominado direito tributário. Podemos portanto definir o
direito tributário como sendo o ramo do direito público que rege as relações
jurídicas entre o Estado e os particulares, decorrentes da atividade financeira
do Estado no que se refere à obtenção de receitas que correspondem ao conceito
de tributos.”[4]
Diante deste cenário, estabelecido pela
linguagem, o Direito Tributário será construído com o surgimento da norma tributária,
pois ela produzirá o comando que dará origem à obrigação tributária que
produzirá, na esfera do dever-ser,
uma relação jurídica entre o fisco e
o contribuinte. Para que a norma
ganhe sentido, e, portanto, possa produzir o comando a ser obedecido, ela deve
estar eivada pela valoração cultural que possibilitou sentido a este momento
histórico. Essa valoração se dará por diversos níveis: econômico,
antropológico, psicológico, histórico, político. Todavia, a valoração só
inundará a realidade jurídica, com a sua axiologia, quando o poder
constituinte, através de seus representantes, devidamente institucionalizados,
verbalizar a linguagem abstrata à linguagem de comando, nesse instante a norma
é criada, podendo ocasionar efeitos materiais às condutas dos indivíduos que
sofrerão a incidência tributária e, consequentemente, recolherão o tributo em
prol do Estado de Direito.
Por isso o direito tributário pode ser
classificado como uma seara de extremada concretude, pois será nele que
poderemos vislumbrar a realidade jurídica se materializar em ações de comando,
conduta e responsabilidade.
Em conformidade os ensinamentos do professor
Paulo de Barros Carvalho, não se deve, em hipótese alguma, olvidar ser a norma
condicionada com a expressão existencial humana formalizada pela cultura, pois
sem este aspecto a norma não possuirá eficácia e será fadada à inexistência
para a realidade jurídica.
Ao se admitir que uma obrigação do direito
surge no momento em que acontece certa manifestação jurídica na vida social,
admite-se, por conseguinte, que o direito funciona com a sua lógica própria.
Essas duas premissas que sustentam o fenômeno jurídico da incidência da norma
sobre o mundo fático, não pode estar submersa ao misticismo do plano das
ideias, ou seja, para o professor Paulo de Barros Carvalho, a doutrina clássica[5]
incorreu no erro de se pensar a incidência como algo que surgiria somente pelo
nascimento de uma situação fática que estaria de acordo com o plano das ideias
jurídicas. Ora, esclarece o professor, para que a incidência se dê, será
necessário a confluência entre o reconhecimento pela autoridade competente,
dentro do sistema jurídico, juntamente com o procedimento adequado: será o
acontecimento jurídico indissociável da realidade jurídica, pois enquanto não
produzida a linguagem com o timbre jurídico não há como garantir que tenha
havido a incidência da norma, pois a juridicidade do fato só ocorrerá quando
for produzido expediente necessário para documentar o seu nascimento, e,
portanto, será através dessas condições que ganhará forma a regra matriz de
incidência:
“Ora, a
regra-matriz de incidência tributária é, por excelência, u’a norma de
conduta, vertida imediatamente para disciplinar a relação do Estado com seus
súditos, tendo em vista contribuições pecuniárias. Concretizando-se os
fatos descritos na hipótese, deve-ser a consequência, e esta, por sua vez,
prescreve uma obrigação patrimonial. Nela, encontra- remos uma pessoa
(sujeito passivo) obrigada a cumprir uma prestação em dinheiro. Eis o
dever-ser modalizado.”[6]
A rigor, a regra matriz de incidência enlaça
o fato cujo qual não pertence à realidade fática, mas à realidade jurídica
cunhada pelo Estado de Direito no alvorecer da república; diante da realidade
jurídica, o fato, construído pela linguagem posta através da prescrição do
direito positivo, será devidamente avaliado pela hipótese para a aferição de todos
os critérios, nela, demandados. Nesse sentido, uma obrigação tributária nasce
quando há a previsão abstrata posta na lei associada a um fato jurídico, que
documentado pela produção dos expedientes que criam a realidade jurídica, já
foram praticados no tempo e no espaço.
É mediante análise que surge a equação
discriminada abaixo:
Enunciando:
a hipótese tributária está para o fato jurídico tributário assim como a
consequência tributária está para a relação jurídica tributária. Os
antecedentes da proporção figuram no mesmo plano — o plano normativo geral e
abstrato; por outro lado, os consequentes da proporção aritmética — fato
jurídico e relação jurídica tributária também se acham no mesmo plano — o
plano que fala do mundo material dos objetos físi- cos e dos seres humanos.[7]
Em suma, qualquer fato social que estiver na
esfera jurídica, não possui o condão naturalístico da realidade fática, contudo
é uma construção determinada pela realidade jurídica fundada em valores
culturalmente estabelecidos pela história, e, portanto, será apreciado conforme
a lógica do sistema, sendo, a norma, o holofote que iluminara a casuística em
prol da coerência com a consciência que o indivíduo possui das formas
mantenedoras da boa operação do direito em função da preservação das bases
civilizacionais.
[1] Segundo o
tributarista Kiyoshi Harada, se pressupõe receita o “ingresso de dinheiro aos cofres do Estado para atendimento de suas
finalidades”. HARADA, kiyoshi. Direito
financeiro e tributário. 26ª Edição. Editora Atlas. São Paulo. 2017. Pag.
41.
[2] Conforme ensina o
doutor Edvaldo Pereira de Brito a despesa pode ser caracterizada como sendo os
“gastos, os recursos aplicados, que o
Poder Público faz de acordo com uma certa solenidade, de acordo com uma certa
formalidade, de acordo com um certo critério”. Atividade financeira do
Estado. Edvaldo Pereira de Brito. GANDRA, Ives Gandra Martins. MENDES, Gilmar
Ferreira, NASCIMENTO, Carlos Valder do (coord.). Tratado de direito financeiro, volume 1. 1ª Edição. Editora
Saraiva. 2013. Pág. 78
[3] Nas palavras de
Paulo de Barros Carvalho, em entrevista dada ao site Conjur, disponibilizado
pelo link.
http://www.conjur.com.br/2009-out-21/livro-aberto-livros-vida-tributarista-paulo-barros-carvalho:
“Ele criou o atual Sistema Tributário Brasileiro do nada,
foi o principal coautor do projeto, e o sistematizador do Direito Tributário no
país”
[4] SOUSA, Rubens Gomes
de. Compêndio de legislação
tributária. Edição póstuma. São Paulo. Editora Resenha Tributária Ltda,
1975. Pág. 65.
[5] A doutrina clássica
possui como o seu maior expoente, o ilustre jurista alagoano Pontes de Miranda.
[6] CARVALHO, Paulo de
Barros. Curso de Direito Tributário. 28ª edição. Editora Saraiva. 2017. Pag.
355.
Nenhum comentário:
Postar um comentário